quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O EDITO DE MILÃO - Ontem e Hoje

Este ano é aniversário do famoso Edito de Milão com o qual o Imperador Constantino (306-337) reconhecia a liberdade de culto à religião cristã. Era o mês de fevereiro do 313. Passaram-se exatamente 1.700 anos.

O Card. Angelo Scola, no dia 6 de dezembro de 2012 abriu solenemente as celebrações dessa comemoração na catedral de Milão.

Mas, o que este documento tem de importante e qual é a sua atualidade na sociedade de hoje?

Precisamos começar um pouco distante no tempo.

Jesus provavelmente morreu na Palestina no ano 30 que a partir do 64 a.C. estava sob o protetorado do Império Romano. Naquele ano o Governador (representante do Imperador) era Pôncio Pilatos (26-36), que assinou a sentença de morte de Jesus.

Era costume romano que os Governadores enviassem a Roma um relatório oficial sobre os acontecimentos da região confiada aos seus cuidados. Desta tradição nos informa o primeiro historiador do cristianismo, Eusébio de Cesaréia (260-340), na sua História Eclesiástica: “Pilatos, segundo um antigo costume de que o governador das províncias transmitisse as novidades ocorridas nelas ao detentor do poder real, a fim de que este ficasse bem informado de tudo, comunicou ao imperador Tibério...” (II, 2, 1).

Naqueles anos, o Imperador era Tibério (14-37). Pilatos enviou a Tibério um informe mostrando-se favorável aos Cristãos e falava também de Jesus, mas desta vez o elogiava e apresentava a Tibério a proposta de reconhecer a sua divindade.

Esta carta é do ano 35.

Justino (100-165) nos confirma em dois passos da sua I Apologia, depois de ter resumido a vida de Jesus: “Que tudo isso aconteceu assim, podeis comprová-los pelas Atas redigidas no tempo de Pôncio Pilatos” (I, 35, 9). Outro passo: “Que tudo isso foi feito por Cristo, vós o podeis comprovar pelas Atas redigidas no tempo de Pôncio Pilatos” (I, 48, 3).

Também Tertuliano (cerca de 155 - cerca de 245) nos transmite esta notícia no Apologético (197 d. C.): “Pilatos, já cristão no seu coração, relatou a César, que então era Tibério, todos os fatos relativos ao Cristo” (21, 24).

Então o reconhecimento da divindade do fundador de uma religião, condição indispensável para que o exercício deta religião fosse admitido no império, era responsabilidade do Senado de Roma. Tertuliano nos dá a notícia: “Existia um antigo decreto de acordo com o qual o comandante supremo não tinha nenhum direito de deificar uma pessoa sem a aprovação do Senado” (Apocalipse, 5, 1).

Tibério enviou o relatório de Pilatos ao Senado mostrando o seu desejo de que Cristo fosse reconhecido como Deus. Aqui veio o conflito de competências. O Senado não gostou desta "pressão" do Imperador, e para defender a sua autonomia, recusou reconhecer em Cristo as prerrogativas da divindade. Portanto respondeu negativamente a Tibério.

Este documento é do ano 35 d.C. e é conhecido na história como "Senatus Consultum".

Desde então, a religião cristã foi considerada no império como “religio non licita”.

É ainda Tertuliano que nos informa sobre isso: “ Tibério, quando informado da Síria-Palestina que lá embaixo se tinha revelado a divindade de Cristo, submeteu a questão ao Senado com voto favorável. O Senado, não tendo aprovado tais fatos, os rejeitou” (Ap, 5, 2).

Eusébio nos apresenta assim os fatos: “Conta-se ter Tibério relatado a questão ao Senado, o qual, contudo, rejeitou a proposta… Uma antiga lei estabelecera que, entre os romanos, ninguém fosse divinizado, senão através de votos e decreto do Senado... O Senado romano rejeitou desta forma o projeto que lhe fora apresentado acerca de nosso Salvador” (H. E., II, 2, 2-3). (Para ver este documento. Marta Sordi, Império Romano e do cristianismo, Escritos Selecionados, Institutum Patristicum Agostinianum, Roma, 2006, p. 33-69).

Pelo qual do 35 d. C. os cristãos não podiam professar oficialmente a sua religião em quanto não reconhecida pelo Senado. Esta situação durou até o 313.

Não necessariamente os cristãos deveriam ser perseguidos. Isso dependia da mentalidade dos Imperadores e da conveniência política.

Nos primeiros três séculos acontecem várias perseguições.

O escritor Lactâncio (260-340, aproximadamente) em sua obra: A morte dos perseguidores (escrito logo após o 313) apresenta as perseguições mais ferozes e em territórios geográficos mais amplos, sob os seguintes imperadores: Nero (54-68), Domiciano ( 81-96), Décio (249-251), Valeriano (253-260), Aureliano (270-275), Diocleciano (284-305), Galério (305-311).

Mas houveram outras em territórios mais delimitados durante os Imperadores: Trajano (98-117), Adriano (117-138), Antonino Pio (138-161), Marco Aurélio (161-180) Septímio Severo (193-211), Gallo (251-253).


Após a vitória sobre Maxêncio no Ponte Mílvio (Roma), em 312, Constantino mudou o estatuto jurídico dos cristãos, com o famoso Édito (fevereiro de 313).

Na verdade, este documento não foi assinado no Fevereiro de 313 em Milão. Após a vitória, Constantino e Licínio (308-323) fizeram acordos em Milão no mês de fevereiro, mas a assinatura e a publicação desses acordos acorteceram no dia 13 de junho de 313 na cidade de Nicomédia. Desta forma se abolia o documento do Senado do ano 35.

O texto nos é trazido por Lactâncio (A morte dos perseguidores, cap. 48) e por Eusébio (História, X, 5, 2-14).

Isto significou que o cristianismo não era mais passível de perseguição mas entrava com todos os direitos no Império Romano.

Devido à sua importância transcrevo de Eusébio a parte mais importante:

“Não se deve recusar a libertade da religião, mas é preciso deixar à razão e à vontade de cada um a faculdade de se ocupar das coisas divinas, conforme preferir... Resolvemos, em primeiro lugar e antes de tudo, dar ordens para assegurar o respeito e a honra à divindade, isto é, decidimos conceder aos cristãos e a todos a livre escolha de seguir a religião que quisessem... Declaramos nossa vontade de que a ninguém absolutamente se recuse a libertade de seguir e preferir a observância ou a religião dos cristãos e de que seja concedida a cada qual a liberdade de dar consciente adesão à religião que julgar melhor...Assim, após a supressão completa das cláusulas contidas a respeito dos cristãos, ficasse abolido o que se mostrasse inteiramente injusto e contrario à nossa brandura, e que agora, livre e simplezmente, cada un daqueles que tomaram a livre decisão de praticar a religião dos cristãos, possa observá-la sem nenhum impedimento”.

Dá para imaginar a alegria dos cristãos por este Édito. Eusébio de Cesaréia escreveu uma Vida de Constantino elogiando muito mesmo esse Imperador. Além disso na Igreja do Oriente, Constantino é considerado um santo.

Certamente mais do que por razões religiosas, Constantino agiu por razões políticas. É suficiente pensar que Constantino só decidiu ser batizado quando estava para morrer.

Mas isso não diminui o grande mérito e intuição que ele teve ao reconhecer que já a realidade no Império tinha mudado, que já o cristianismo e a Igreja tinham uma função social e jurídica, pelo qual já era anacronístico continuar com a proibição do Senado. Constantino viu no Deus dos cristãos não um perigo para o Império, mas uma ajuda. Já a religião imperial mostrava-se insuficiente diante das novas problemáticas. Na religião cristã Constantino viu uma ajuda para garantir a estabilidade do Império e para salvar a civilização romana.

Infelizmente, esse equilíbrio foi quebrado pelo seguinte Édito de Tessalônica do 27 de Fevereiro de 380, no qual a religião cristã foi reconhecida como a única e verdadeira religião a ser professar no Império: "Nós queremos que todos os povos permaneçam fieis àquela religião transmitida pelo divino apóstolo Pedro aos Romanos... Ordenamos que o nome dos Cristãos católicos abrace aqueles que seguem esta lei, enquanto os outros loucos e insanos... devem ser castigados” (Para este documento, e toda a legislação: o cristianismo nas leis da Roma Imperial, a c. Alberto Barzanň, ed. Pauline, Milão 1996; texto citado está em p. 228.).

Este Edito tem um signifaco epocal porque marca o começo da liberdade do homem moderno. O Estado reconhece a liberdade dos seus cidadãos de professar aquela religião que em consciência acreditam que seja a melhor.

Com Constantino o Estado se torna laico, no sentido mais verdadeiro do termo. Laico não significa indiferente ante a religião, ou pior, relegar a religião ao interior da consciência, mas reconhecer a dimensão espiritual do homem, que tem também implicações sociais, permitir a liberdade de culto sem interferências e limites.

Neste sentido o Estado laico é um Estado crente no duplo sentido.

Crente em Deus a quem deve prestar o culto devido segundo a virtude da justiça, que neste caso se transforma em virtude da religião.

Crente no homem porque o Estado reconhece não somente a sua dimensão biológica e cívica, mas também aquela espiritual. Dessa forma evita-se um antropologismo redutivo e vem reconhecido um antropologismo transcendente.

Bento XVI mais de uma vez falou de “laicidade positiva”

“A ‘laicidade sadia’ exige que o Estado não considere a religião como um simples sentimento individual, que poderia ser confinado exclusivamente no âmbito particular. Pelo contrário a religião... deve ser reconhecida como presença comunitária pública... Não é um sinal de laicidade sadia a rejeição, à comunidade cristã e àqueles que legitimamente a representam, do direito de se pronunciar a respeito dos problemas morais que hoje interpelam a consciência de todos os seres humanos, de maneira particular dos legisladores. Não se trata de uma ingerência indevida por parte da Igreja na atividade legislativa, própria e exclusiva do Estado, mas sim da afirmação e da defesa dos grandes valores que dão sentido à vida da pessoa e salvaguardam a sua dignidade. Antes de ser cristãos, estes valores são humanos... Nesta nossa época há quem procure excluir Deus de todos os âmbitos da vida, apresentando-O como antagonista do homem... É nossa tarefa fazer compreender que a lei moral que Ele nos deu tem a finalidade não de nos oprimir, mas de nos libertar do mal e de nos fazer felizes. Trata-se de mostrar que sem Deus o homem está perdido, e que a exclusão da religião da vida social debilita os próprios fundamentos da convivência humana” (Bento XVI, discurso à União dos Juristas Católicos Italianos, 9 de dezembro de 2006.).

E ainda: “Sem dúvida, esta ‘sã’ laicidade do Estado comporta que cada realidade temporal seja regida segundo normas próprias, que todavia não devem descuidar as instâncias éticas fundamentais, cujo fundamento se encontra na própria natureza do homem e que, precisamente por este motivo, remetem em última análise para o Criador” (ao Embaixador, Discurso da República de São Marino, 13 de novembro de 2008).

Esta "sã laicidade do Estado" não é um resultado do Concílio mas faz parte do Magistério constante da Igreja. Já Pio XII no discurso do 23 de março de 1958, se expressava: “A legítima sã laicidade do Estado é um dos princípios da doutrina católica”. Assim, um Estado laico é aquele que não impede a busca do sentido da própria vida de cada pessoa e que garante que os direitos humanos fundamentais sejam respeitados e protegidos.

A autêntica laicidade não coíbe, mas postula uma sã colaboração entre o Estado e a Igreja, dado que ambos, embora diversamente, estão ao serviço da vocação pessoal e social das mesmas pessoas humanas.

Estas reflexões do Papa Bento XVI também são compartilhadas por outras pessoas capazes de refletir. Um destes é o escritor Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Ele meditou no slogam: "Como se Deus não existisse". E concluiu que esta expressão é a desgraça da sociedade moderna e não só está cheia de agnosticismo, mas também privada de toda moralidade. Pungentemente escreveu: "Se Deus não existe, qual crime pode existir?" (Os Irmãos Karamazov, Livro VI, cap. 3) "Uma vez que a humanidade tenha negado a Deus... o homem se exaltará com um espírito divino, de orgulho titânico, e aparecerá como homem-Deus... Se Deus não existe, tudo é permitido"( Idem, Livro XI, cap. 9.).

O Estado vai por água abaixo. Tornando-se tudo lícito não existe mais o delito. Toda ação, também a mais negativa, obtém livre cidadania. Diante disso o Estado é impotente; tirando Deus e não reconhecendo a liberdade religiosa, está fadado à morte.

A outra grande personalidade é Victor E. Frankl (1905-1997), fundador da Terceira Escola de psicoterapia de Viena, a Logoterapia. Ele fundou a sua teoria sobre a busca do ‘sentido da vida’. Individualizou a realização da pessoa quando esta encontrou o sentido da sua vida; diz que quando a vida não tem mais significado, vem o desespero, a degradação e o ser humano é capaz de qualquer coisa quando se forma o ‘nada’; sucessivamente ao sentido da vida vem o ‘tédio’ do viver. Vê no niilismo o grande inimigo: “Confundir a dignidade do ser humano com mera utilidade surge de uma confusão conceptual que pode ser attribuída em suas origens ao niilismo contemporâneo... O niilismo não afirma que não existe nada, mas afirma que tudo é desprovisto do sentido” (Victor E. Frankl, Em Busca de SENTIDO, Ed. Vozes, Petrópolis, 2008, p. 173.).

Daqui se deduz que a visão da vida apresentada pela Igreja não tem diretamente fundamento cristão, mas é uma exigência enraizada na natureza mesma do homem, compartilhada por pessoas de outras religiões.

Autor: Vitaliano Mattioli
Fonte: http://www.zenit.org/pt/articles/o-edito-de-milao-ontem-e-hoje-parte-iii